Carta de agradecimento à Burocracia Portuguesa
Cara Burocracia,
Faz agora 14 meses que te enviei a primeira carta. 14 meses.
Na altura, com algum medo, lá escrevi aquelas primeiras linhas. No meio do turbilhão em que a minha vida se tinha tornado, foi difícil tomar aquela decisão. Mentira, corrijo. Foi uma decisão fácil e óbvia de tomar, foi difícil verbalizá-la. Torná-la oficial.
Como podes imaginar (permite-me a intimidade, mas já te sinto tão próxima), assim que pomos as coisas a andar, queremos é despachar o assunto! Já que ia mudar de carreira, de rumo, o melhor era fazê-lo logo! Não pensar demasiado, pelo risco de querermos dar dois passos atrás. Ruminar decisões importantes pode ser tóxico. Dá-nos tempo para ter saudades, para duvidar do futuro. E, acredita, gostava do que fazia! Mas, às vezes, as paixões que temos chocam entre si, anulando-se. Ganhou a paixão pela minha filha. Sempre acreditei que concordarias comigo mas, deixa-me insistir, demoraste demasiado.
Para alguém habituada a um ritmo incessante de trabalho, ficar tanto tempo à espera foi desesperante. Penso que todo o ser humano tem uma inclinação congénita para o queixume. Utilizei-o exponencialmente, difamando-te várias vezes. Porque eras lenta de mais, complicada! Querias papéis e mais papéis, querias que esses papéis fossem lidos e avaliados por várias pessoas...e bem! Concordo com a correcta avaliação das situações, não sou a favor de facilitismos. Mas, na era da tecnologia, custava-me compreender como é que esses papéis demoravam tanto a passar de mão em mão.
É por isso que te escrevo agora. Para te pedir desculpa e reconhecer que tudo na vida depende de perspectivas. Reconheço-o em retrospectiva. Substituo a revolta pelo agradecimento.
Agradeço-te pelos 14 meses de espera.
Vejamos...
- Consegui acompanhar, diariamente, o crescimento da pequenina. Isso mesmo, todos os dias! Estive presente em todos os sorrisos, nos primeiros passos, nas primeiras palavras. Não perdi, absolutamente, nada. Um privilégio, como podes calcular! A grande maioria das mães vê-se forçada a entregar, ao cuidado de outros, os seus bebés. Quantas internas se vêem pressionadas a terminar mais cedo a amamentação? Os olhares recriminatórios pelo horário reduzido como se de desleixe ou falta de interesse se tratasse? Que importância tem a família? Quem manda o interno ter família? O interno é um ser, idealmente, órfão. Órfão, solteiro e infértil. O tapa buracos. Deste-me os dois primeiros anos de vida da minha filha. Ser-te-ei, eternamente, grata.
- Consegui vigiar a saúde dela. Planear as refeições, dividir as enzimas pancreáticas com calma. Escolher os ingredientes e as calorias. Consegui controlar o ambiente em que ela cresceu, adaptando-o às necessidades e intercorrências.
- Estudei muito a Fibrose Quística. Tive tempo para, inconscientemente, negar a doença para, depois, conseguir aceitá-la. Tudo isso é um processo e todos os processos levam tempo. Mas, em 14 meses, consegui actualizar-me! Consigo perceber onde estão as falhas, os perigos. Sei o que precisa de mudar e a urgência com que deve ser mudado.
- Foi-me possível abrandar o rítmo de vida. Parar e fazer o ponto da situação, repensar prioridades. Consegui redescobrir-me de outras formas, encontrar novas áreas de interesse. Tive tempo para ler muito, ao sabor da curiosidade e dos apetites (mérito do sono irrepreensível da bebé, que sempre me deu noites inteiras). Ao parar, conseguimos observar o pormenor. São os pormenores que tornam as nossa vidas únicas.
- Escrevi. Voltei a escrever. É a minha forma de paz.
"A literatura era o que acontecia ao seu autor quando se detinha, permanecendo imóvel, enquanto todos os outros continuavam a dobrar esquinas (...)". (a)
- Devo-te a meia-maratona. Sim, consegui correr uma meia-maratona! Deste-me tempo e calma para seguir um plano de treinos e tempo para, depois, recuperar do esforço.
Podia continuar...tenho a certeza que conseguia espremer mais positivismo desta experiência. Quando, a princípio, achava que tinham sido 14 meses desperdiçados, apercebo-me da realidade. Ganhei-os. Vivi-os. Vivemo-lo juntas, eu e ela. Podia continuar a queixar-me da tua inércia e lentidão. Podia. Mas aprendi a ver a vida de outra forma (mérito da vida em si e do meu marido, um visionário). Perdemos coisas. Ganhamos outras.
De qualquer forma, agora que resolveste dar sinais de vida, não demores muito mais. As coisas entraram nos seus eixos, o destino segue o seu caminho. E eu estou pronta. Já posso ir trabalhar?
Com a nostalgia de uma despedida antecipada (duvido, porém, que definitiva),
Despeço-me cordialmente,
JR
(a) - in "Biografia involuntária dos amantes" de João Tordo.