A viagem - uma história #6 e #7
Setembro de 2012
VI
Quero uma casa em Monsanto. Pequena, com poucas divisões, de varanda virada para o pôr-do-sol e tendo, como parede, um pedregulho.
É um sítio que transborda paz, em todos os cantos da vila, com pedras enormes, lá no alto, quase a tocarem o céu. E o chilrear dos pássaros, à tardinha, preenche o silêncio. Chegar ao castelo é cansativo, mas totalmente compensador. Quem me deu as indicações precisas do caminho a seguir foi um senhor americano, de cabelo comprido, loiro, e longo bigode farfalhudo: "You just go straight up from here. Follow this road and you´ll find some beautiful, beautiful things". Pelo caminho, encontrei galinhas e um porco numa pocilga, revestida a pedra antiga e atapetada de maçãs podres que ele comia com vontade. Lá no alto, no ponto mais alto, sentimo-nos donos do mundo, como se mais nada estivesse acima de nós. A vista devolve-nos anos de vida, coragem, força, determinação. Por isso mesmo, sublinho, quero uma casa em Monsanto.
Deixei-me ficar no castelo durante um bom bocado. Queria gravar, de qualquer forma, aquela imagem na memória, para poder voltar a ela sempre que quisesse. Agora, apenas à distância de um dia, queria ser capaz de descrever todas as tonalidades que vi, mas já não consigo. No caminho de regresso, encontro uma senhora, vestida de preto e de cabelos brancos, a dormir sentada, cabeça pendente, num banco de pedra. Silenciosamente, tirei uma fotografia. Voltei-me para seguir caminho, quando ela me chama - "Ah, veja lá! Estou com uma soneira! Venha aqui ver as marafonas, para ver se acordo". "Pois, deixe lá...depois de almoço é mesmo hora para ter sono" - brinquei enquanto avançava para o cestinho cheio de bonecas. "São todas ao mesmo preço. Aquelas pequenas têm um íman para pôr no frigorífico." - explicou - "é a minha filha que as faz". Eram, realmente, engraçadas. Fiquei a saber que as marafonas, estas bonecas de vestidos coloridos e cabeça branca, eram usadas em rituais de fertilidade. "Até já estive no Porto, naquele programa da Praça da Alegria" - gabou-se. Sorri, pedi desculpa por não comprar nenhuma, mas estava sem dinheiro e o multibanco ficava a uns quilómetros de distância.
Estou, portanto, nas Beiras. Tudo à minha volta me parece familiar, desde a paisagem rochosa, granítica, ao cheiro dos pinheiros. Aproximo-me da Guarda, o meu próximo repouso. Chego ao fim do dia, faço o check in no Hotel e deito-me a dormitar uma hora antes de sair.
A zona central da Guarda é acolhedora. À volta da Sé espreguiçam-se ruas estreitas pitorescas com cafés e esplanadas. Sento-me numa delas e escrevo um postal de cortiça, que comprei a um senhor, enquanto me refresco com uma cerveja fresquinha. Decido jantar no quarto do hotel, para poupar algum dinheiro. Faço uma salada rápida. Viajar assim, por Portugal, não fica barato e estamos em crise. Aproveito a boleia e encosto-me na cama a ouvir o discurso do nosso Primeiro Ministro, senhor ilustre, que nos diz, calmamente, que estamos todos lixados.
VII
Rectifico. Quero uma casa algures no Vale do Côa. Não apenas uma casa, quero uma quinta com videiras, oliveiras e amendoeiras em flor. Quero produzir vinho, azeite e acordar para a vastidão de flores brancas!
A manhã, na Guarda, começou como todos os outros dias, com o pequeno-almoço a que já estou habituada. Assim que peguei no carro, apesar de me sentir confiante ao volante, acabei por me enganar e apanhar uma auto-estrada. Mais um desperdício de dinheiro! Assim, quase sem querer, cheguei a Almeida por Trancoso. Almeida, a cidade muralhada mais impressionante de Portugal, com as suas fortificações em forma de Estrela. Contudo, depois de tanto ter calcorreado Portugal, e de ter encontrado recantos tão bonitos, Almeida não me impressionou. Dei a volta à muralha, sentei-me a comer uma pêra e segui caminho.
Decidi parar em Castelo Rodrigo. Segundo o mapa, era a paragem seguinte mais lógica. Ao chegar à rotunda que me levaria ao castelo, lá no alto, reparo numa placa que indicava o caminho para um miradouro na Serra da Marofa. Nem mais! "Vamos lá inovar!" - pensei eu. Subi, subi muito, numa estrada ora ladeada por pinheiros, ora por um precipício à direita. Tentei concentrar-me na estrada à minha frente, resistindo à paisagem absolutamente deslumbrante, que adivinhava pelo canto do olho. Ao longo da subida, vão aparecendo pequanas casinhas de pedra que, no seu interior, albergam pinturas cristãs. Chegar ao cume, foi das melhores surpresas desta viagem! Lá no topo, uma estátua de Cristo recebe-nos de braços abertos. Uma espécie de Cristo-Rei em ponto pequeno. Mas ele lá está, abrindo os braços sobre Castelo Rodrigo, como quem a protege e abençoa.
O resto do caminho levou-me, por fim, ao vale do Côa e ao Douro vinhateiro, onde hei-de regressar vezes sem conta. Tinha ideia de chegar a Foz Côa e tentar, a todo o custo, conseguir uma visita guiada às pinturas rupestres. Mas, assim que pus os olhos naquelas montanhas de um verde intenso, ordenado em fileiras de videiras e oliveiras, numa disposição quase milimetricamente pensada, criando padrões de verde no horizonte, não resisti a deambular por ali.
A pousada da juventude fica mesmo à saíde de Vila Nova de Foz Côa e as suas traseiras dão para os montes. Perguntei, na recepção, pela praia fluvial mais próxima. Queria mergulhar no Douro. Vesti o bikini o mais rápido que consegui e saltei, sorridente, para o carro em direcção a Pocinho. Admito que a praia fluvial não era tão agradável quanto estava à espera, mas o calor das quatro da tarde e o verde azulado da água convenceram-me a dar um mergulho, apesar do musgo que flutuava à superfície. Um pouco mais à minha esquerda, dois amigos estavam sentados a pescar. Pelo que me fui apercebendo, através das palavras pouco animadas que iam trocando, a pescaria não estava a correr muito bem. A verdade é que, enquanto estive por ali deitada ao sol, para além do zumbido persistente das moscas moles que voavam à minha volta, ouvi várias vezes peixes a mergulhar nas águas.
To be continued...
Acabei o dia em conversas, um tanto ou quanto filosóficas, com um amigo, ao jeito de antigas conversas cibernáuticas do passado. Adormeci pensando, seriamente, no conceito de felicidade, de paixão, de ponto fraco e defeito. Sonhei com o Douro.