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The Middle Way

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15 de Janeiro, 2018

A viagem - uma história #5

JR

Setembro de 2012

 

V

 

É noite e está uma ventania em Idanha-a-Nova. A zona antiga da cidade, onde fica a minha pousada, está completamente vazia. Cá fora,  de pêlo esvoaçante, está um gato preto a comer um bocado de fiambre que o senhor da recepção lhe deu. O vento quente uiva, abana os ramos das árvores. Diria que podia começar a chover a qualquer momento, desabando sobre nós um temporal medonho.

 

Conheci Castelo de Vide pela manhã. É uma vila muito engraçada, com ruas que sobem e descem, íngremes, levando-nos até ao castelo e ao forte de São Roque. Por volta do meio dia, já rolava os pneus pela estrada fora. Estamos, definitivamente, numa paisagem completamente diferente das anteriores! A serra envolve-nos, as árvores crescem nos céus, criando sombras agradáveis na estrada. De sul para norte, os animais que vamos vendo pelos caminhos vão, também, mudando. Primeiro, pastam vacas e touros nos longos prados do baixo alentejo. Mais a norte, começamos a ver cavalos imponentes. Subindo mais ainda, deparamo-nos com ovelhas preguiçosas.

Entretanto, Tejo à vista! Estava um calor insuportável! Cheguei a Castelo Branco já cansada, a precisar urgentemente de um café e, talvez, de uma sesta. Mas, lá me contive e, debaixo daqueles raios de sol em brasa, andei pela cidade. Já não estava habituada a tanta confusão! Todos os caminhos que fui fazendo, até agora, levaram-me a cidades calmas, terriolas e vilas praticamente desabitadas, mantendo-se firme a população idosa, com senhores dormitando nos bancos de jardim. Castelo Branco tem vida! Tem cafés apinhados de gente! Talvez, por isso mesmo, decidi continuar viagem. Procuro recato e paz.

Depois de uma rápida incursão a uma barragem perdida no meio do caminho, uma tal barragem Marechal Carmona, e um passeio por Idanha-a-Velha, achei que o melhor plano para hoje era jantar umas pêras que tinha na mala do carro e acabar o dia, na pousada escolhida em Idanha-a-Nova, a ver um filme. E foi assim que, pela primeira vez, senti saudades do hospital. O filme, Lourenzo´s oil, foi-me recomendado pelo meu pai. Trata de uma história verídica, de um menino com Adrenoleucodistrofia. Vi o filme todo, concentrada nos pequenos progressos da medicina. E foi, no final do filme, que vim para a rua e me apercebi do vento furioso. Sentei-me a pensar, finalmente, naquilo que quero fazer da minha vida. Os meses vão passando e ainda tenho uma escolha importante por fazer. Deixo-me embalar pelo vento. E penso.

 

 

Ser médica, pela primeira vez, não é fácil. Entramos no hospital de cabeça erguida e de canudo na mão. Há, primeiro, que nos habituarmos ao espaço, às rotinas dos serviços, aos nossos chefes. Trazemos na memória algumas das milhares de páginas que lemos ao longo dos seis anos de curso. Seis anos conglomerados, por fim, nos cinco intermináveis capítulos que nos são depositados, pesadamente, nos braços. Seis anos resumidos num, que determina o nosso futuro. Olhando para trás, parece impossível termos aguentado aqueles dias sem fim, naquela rotina rígida de bibliotecas e de café atrás de café, de sestas rápidas em cima dos livros, de almoços cronometrados ao segundo. Dias em que os nossos pequenos prazeres se resumiam a conversas ocasionais e às horas de sono que nos permitíamos por noite. Aquele ano pareceu-me um dia gigante. Tudo para um exame que acaba num piscar de olhos.

 

E, então, sou médica. E, de doente à frente, a sensação que tenho é que preciso tirar um outro curso de Medicina. Olho para o doente e recordo a sequência de passos da história clínica. Faço as perguntas, anoto tudo. "Lembra-te do que é importante!", "E agora? Qual o próximo passo? Claro, o exame físico! O precioso exame físico!". Procuramos e remexemos na memória à procura de todos os diagnósticos diferenciais. "Não te esqueças de nada...tens tudo na cabeça. O que não tiveres podes sempre procurar nos livros...". Mas é uma sensação gratificante, ganhar prática a cada dia que passa. Aprendermos, agora sim, realmente aprendermos, o que é ser médico, o que é ser doente. Não é o curso que nos faz médicos. Só somos médicos ao sê-lo. Vamos sendo, aos poucos. 

 

Milhares de pessoas passam por nós nas urgências, mas há sempre algumas que nos marcam. Lembro-me de uma senhora espanhola, com cerca de 60 anos de idade, pacificamente deitada na maca, na sala da pequena cirurgia, com um golpe fundo na testa que vertia sangue. Tinha acabado de entrar, depois de várias horas à espera. Cá fora, ouviam-se choros e queixas de doentes que esperavam. Maridos batiam à porta, furiosos, a perguntar pelas suas esposas, reivindicando braços inexistentes e trabalho redobrado. "Peço desculpa, tem de ter paciência, há muita gente e temos de ver primeiro quem está pior" - explico, sem saber para onde me virar, enquanto outro senhor me agarra no braço - "menina doutora, isto é inadmissível!". Fecho a porta e respiro fundo. Resgato, mais uma vez, da memória todos os passos da história clínica, enquanto me aproximo da senhora espanhola. Tinha caído de uma escada, nunca tal lhe tinha acontecido antes. Deve ter escorregado. Sorri para mim enquanto a suturo, sem nunca se queixar. Diz-me que é espanhola, mas que já vive em Portugal há muitos anos, depois de se ter casado com um português. "E gosto de cá estar". Continuamos a conversar, limpo a sutura, arrumo o campo de trabalho e faço todas as recomendações devidas. Suspiro e preparo-me para voltar ao corredor atulhado de gente quando a senhora me chama - "Obrigada, doutora" - Fiquei parada uns segundos. É tão raro ouvirmos tais palavras! - "Ora essa, que ideia! Não fiz mais que o meu trabalho..." - digo, ainda atrapalhada. "Não, doutora. Aqui, toda a gente se queixa, toda a gente tem dores. São poucos os que reconhecem o vosso trabalho quando, todos os dias, lidam com a miséria humana. E a menina é jovem, tem de ser forte". Sorrio, aperto-lhe a mão. "Obrigada." - digo eu, desta vez. Continuo o meu turno, motivada. São estas as nossas baterias. Meras palavras.

 

 

To be continued...

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