Setembro de 2012
Desta vez, atravessei Portugal na horizontal. A estrada tornou-se mais acidentada, com curvas apertadas, serpenteando ao longo de montanhas. Deixo para trás o Parque Natural de Montesinho. Chego, sem grande dificuldade, a Chaves. Começo a não gostar de domingos. As cidades tornam-se melancólicas de tão vazias que estão. As ruas desertas de lojas fechadas. Passo por casais solitários e calados, de mãos dadas, que passeiam pela Rua Direita, por baixo de varandas de madeira. Sento-me a olhar o Tâmega que passeia calmo, também ele domingueiro. O tempo passou rápido: nove dias supersónicos num país que me enche a alma. Como uma sandes num café e vejo o telejornal. O povo português, pacífico por natureza, começa a exaltar-se. Os ânimos aquecem num descontentamento que é geral.
Atravesso o fabuloso Gerês. As montanhas são gigantescas, imponentes! A estrada ziguezagueia lá no alto, vertiginosamente, em vistas fenomenais. Deixo barragens para trás, vejo burros pelo caminho. Olho o mapa, já rasgado do uso, e seguro o volante. Sinto-me cada vez mais confortável a conduzir. Desenvencilho-me em Braga, depois de me ter perdido por breves instantes, e entro novamente na estrada nacional.
Estou no Minho! Tudo à minha volta é verde! Vejo videiras de uvas escuras, maduras. Festas em várias vilas, honrando vários santos.
Entro em Ponte da Barca. A praça central tem um café com muita gente. Atravesso a praia fluvial e arrependo-me de não ter trazido o bikini vestido. Lá ao fundo, vejo a ponte em contraluz. Perco-me nas ruas e encontro um caminho de terra batida atrás da igreja e aproveito para petiscar umas amoras silvestres que pendem de muros velhos.
Em Ponte de Lima festejam-se as colheitas. A margem do rio está cheia de vendedores, de carrinhos de choque e de quiosques de farturas. Acendem-se as luzes. As pessoas estão felizes. Eu estou feliz.
Tenho, pela primeira vez, companhia no quarto da Pousada. Hoje, aqui, estou apenas eu e um grupo de franceses. Trocamos poucas palavras em inglês, língua comum, e sorrimos. Dentro de poucos dias regresso à companhia dos meus colegas, à agitação normal do dia-a-dia. Regresso a casa.
E onde é casa?
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Comprei o jornal em Valença. Conclusão? O mundo está um caos! Existe uma diferença abismal entre ler uma notícia solta, aqui e ali, e ler um jornal de fio a pavio. É a austeridade e a violência doméstica. É a violência na Síria, que se mantém sem previsões de fim para breve. É o Japão e a China que lutam pela posse de ilhas onde poderá haver petróleo. São manifestações contra o vídeo que ridicularizou Maomé, com ameaças de morte a americanos.
Morte. Em segundos, mata-se uma pessoa. Em dias, milhares morrem. Não é a morte, em si, que me assusta. É o ódio e o medo no olhar. A desvalorização da vida. A intolerância. O poder. A patetice dos egos. Tudo isto me ultrapassa. As guerras continuam, a história repete-se. Não houve evolução de espírito, houve aumento de cobardia. E vivemos nós na modernidade...
Perdida na fortaleza antiga de Valença, a minha viagem foi interior. Para quê imaginar antigas batalhas, quando elas nos desfilam, diariamente, à frente dos olhos? Para onde caminhamos? Qual o nosso papel?
Em Vila Nova de Cerveira um rio separa-me de Espanha. Uma angústia mancha-me a alma. Imagino-me um pontinho minúsculo no mapa de Portugal (invisível no mapa do mundo!) e a percepção da minha pequenez esmaga-me. Na Pousada da Juventude cruzo-me com um casal jovem que está a fazer o check in. Nesta altura do ano, somos poucos em viagem por estas bandas. As aulas começaram, o dinheiro não chega. Estico as costas, já doridas da viagem, e espero que os minutos passem a seu ritmo. Não tenho pressa.
Ao final da tarde, decido sair. O centro da vila alcança-se num instante. A praça está, moderadamente, cheia. Pacatos senhores, sentados em frente à Igreja, trocam impressões. As ruas estão repletas de pequenos farrapos coloridos que anunciam que, também aqui, houve festa. Compro uns enlatados numa mercearia que levo para jantar. Já na pousada, o tal casal senta-se na sala de convívio e vemos juntos, sem ver, um programa qualquer na televisão.
Por muito que viajemos sozinhos, por muito isolados que estejamos, nunca estamos sós. Cada cidade pode ser nossa, cada pessoa pode ser família. Pela estrada fora, tenho encontrado um povo português abatido, mas sempre afável. Por mais pequeno que seja o nosso ponto no mapa, temos um mundo que nos rodeia e que merece o nosso esforço. Cada um de nós importa. A nossa mais pequena acção repercute-se na vida de alguém. As acções somam-se. Que venham todos os jornais! A informação é a arma de qualquer luta pacífica.
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Estou no último dia da viagem e segui caminho até à maravilhosa Foz do Minho. Soube-me bem voltar a pisar areia da praia. Pela primeira vez, pisei águas fluviais e marítimas em simultâneo! Senti, de imediato, o cheiro a maresia. Inspirei fundo, abrir os braços e sorri para Espanha. As ondas aterram pacificamente na areia e, lá longe, ouve-se o rugido ininterrupto do oceano. Sinto-me, literalmente, entre a tempestade e a bonança, como se estivesse no limbo que separa o passado do futuro. Demorei-me longos minutos a saborear esta antítese de tempo e de estado de alma.
Mais tarde, acabei por parar na praia de Afife. Apesar do sol, sopra um vento gelado. Enchi-me de coragem, corri até à água e mergulhei. Senti-me congelar de forma progressiva, cada osso do meu corpo a protestar. A praia estava deserta. Deitei-me ao sol frouxo, tentando secar o máximo possível e adormeci na imensidão das horas que ainda tinha até ao anoitecer.
A meio da tarde, estaciono em Viana do Castelo. Mais uma cidade feita de reboliço. Fiz o resto do caminho até Penafiel sem parar. Cheguei ao anoitecer. Jantei numa tasca com um amigo da faculdade e conversamos até tarde.
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Chegar a Faro é aconchegante. Não consigo descrever a paz que sinto. É incrível como, em pouco tempo, moldamos uma cidade à nossa medida.
Lembro-me perfeitamente do primeiro momento que pisei Faro. Consigo, ainda, sentir a estranheza do local, a entrada fria pela zona industrial, o Fórum iluminado com as luzes do Natal, o cansaço da passagem de ano recente e a alegria, sim, a imensa alegria de estar ali, no abismo do desconhecido. Tinha uma cidade inteira por descobrir, um Algarve de costa longa e, principalmente, tempo nas minhas mãos para aproveitar cada passo. Faro, nos longos dias quentes de Verão, tornou-se o nosso recanto. Voltei a dar valor aos pequenos prazeres da vida: um livro numa esplanada com vista sobre o mar ou sobre a ria, gargalhadas fáceis numa mesa rodeada de amigos, derramando o olhar sobre o horizonte largo e longo.
Serviço após serviço, estágio após estágio, conheci gente diferente e aprendi com todos eles. Aprendi com os meus colegas, meros internos como eu, na base da cadeia alimentar hospitalar. Colegas que se tornaram amigos. Aprendemos como sobreviver à insegurança que a falta de experiência nos dá e a arranjar forma de ganhar essa experiência e de a partilharmos. Aprendi que, num simples balcão dos verdes, por vezes caótico, conseguimos organizar a nossa pequena equipa e conseguimos ser bons, verdadeiramente bons. Ficamos contentes com os pequenos grandes diagnósticos que fazemos, com o nosso raciocínio cada vez mais perspicaz. Aprendi, sobretudo, com os doentes.
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A dona Miquelina, uma senhora de 89 anos, deu entrada no nosso internamento, enviada do Serviço de Urgência. Era uma senhora pequena, magra, de cabelo curto acizentado, de conversa escassa e olhar triste. Vinha com queixas vagas de dor abdominal e um diagnóstico inicial de gastroenterite e desidratação. Trazia, contudo, uma TC abdominal onde se via um volumoso conglomerado adenopático junto à aorta. Ficou connosco para estudo de caso clínico. Cabia-me, a mim, avaliar a sua evolução clínica todas as manhãs, pelo que acabamos por manter um contacto próximo. Alegrava-me nos dias em que não sentia dor, ou quando o seu apetite aumentava. Fez inúmeros exames. Melhorou e piorou, ciclicamente.
Tinha um linfoma. Pequenas outras adenopatias foram descobertas, mais tarde, à volta dos brônquios e da traqueia. Foi piorando, lentamente. Tinha muitas visitas de familiares, principalmente da sua neta, que lhe tinha uma dedicação enternecedora, já rara nos dias de hoje. A doença estava disseminada e tentavamos dar-lhe conforto, apesar das infecções respiratórias sucessivas que acabou por ir sofrendo.
Naquela manhã, durante a visita à enfermaria, percebi-lhe uma maior dificuldade respiratória que se agravou de forma galopante. Poucas palavras me conseguiu dirigir, mas hei-de sempre recordar o olhar assustado, dirigido ao tecto do quarto, como quem procura o céu. O vaivém da enfermeira, aumentando o oxigénio e a dose de morfina. O telefonema para a família, as lágrimas escondidas do chefe da equipa. Eu que lhe dava a mão e engolia as lágrimas que não queria soltar. O medo nos olhos e a respiração ofegante. A neta a chegar e o conforto do abraço, o aconchego de ter um pouco do lar num quarto impessoal do hospital. O medo que vai passando nesse abraço, cada vez mais apertado de despedida. As cortinas que fecham, as lágrimas que não contenho. O abraço que dou à neta. O óbito certificado. A mão que dou à dona Miquelina que encontrou o céu. A certeza que também somos impotentes e que a vida acaba. A família. Os médicos. Os doentes. A dona Miquelina que me ensinou a ser forte.
Larguei as malas no meu quarto fechado e escuro e deitei-me no sofá da sala. No meu sofá. Na minha sala.
Esta viagem acaba.
Outra começa.
FIM