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The Middle Way

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03 de Fevereiro, 2018

A viagem - uma história #8

JR

Setembro de 2012

 

VIII

 

Desta vez, custou-me seguir em frente. Mas, Brangança esperava ansiosamente pela minha chegada. Antes de deixar o Côa e o Douro, com a nostalgia de uma despedida, fui comprar duas garrafas de vinho às caves de Pocinho e subi, sorvendo a paisagem, ao miradouro de Santa Bárbara, em Mós. O resto do caminho foi perdendo a beleza sem igual do Douro. A maior parte das estradas até Bragança parecem estar em obras intermináveis, sendo um aglomerado de betão, alcatrão e poeira castanha que me sujou o carro. A meio caminho, parei em Mirandela. Paragem estratégica para almoçar uma das suas famosas alheiras. O empregado de mesa, sempre brincalhão, lá me trouxe um fabuloso exemplar com todas as calorias a que tinha direito. Perguntei onde podia comprar aquelas mesmas alheiras, dirigi-me à loja indicada e lá vim eu, contente, com o meu petisco no porta-bagagens.

 

Chegar a Bragança foi um alívio! Tinha conseguido! Cheguei ao norte de Portugal! Quase a tocar Espanha! 

A pousada da juventude estava, pela primeira vez, repleta de gente, brasileiros em maioria. Jovens acabados de chegar para um ano de Erasmus. Trocámos umas palavras enquanto eles bebiam cerveja portuguesa, prontos a iniciar mais uma noitada de fim-de-semana. Lembrei-me, com nostalgia, dos meus primeiros tempos em Praga, naquele já longínquo ano de 2008.

Bragança é atravessada por um rio que parece estar a morrer, com pouca água estagnada. De qualquer maneira, tem um centro histórico acolhedor, que  me recebeu alegremente naquele fim de tarde. Acabei por me juntar à população numa das muitas manifestações contra a austeridade que decorreram por todo o país. Esta, muito mais modesta, mas com o mesmo empenho e indignação. Ouviram-se palavras de ordem, cartazes espalhados ao longo da praça, caras sérias e tristes. Numa das maiores manifestações que o país viu desde 1974, fiquei orgulhosa do povo português, da nossa perseverança e pacificidade, da nova geração que se levanta e luta por um futuro neste país que, apesar de pequeno, se eleva em beleza, história e determinação. O meu país que agora descubro.

 

Janto uns noodles rápidos e baratos, preparados na cozinha do alberguista, enquanto ouço as conversas animadas dos brasileiros, contando as suas peripécias. Parece que acabei de entrar numa das muitas telenovelas que passam, diariamente, nos canais portugueses.

 

 

Cheguei a Praga às seis da manhã. Lembro-me, perfeitamente, da primeira vez que a vi, naquela manhã fria e cinzenta, da janela do carro de Petr, o nosso buddy que, gentilmente, nos foi buscar ao aeroporto. Começava o meu ano de Erasmus, aquele que foi dos marcos mais importantes da minha vida, o grande ponto de partida para a minha independência. 

 

Hostivař é uma das zonas da periferia da cidade e é uma zona feia. Ficamos alojadas na residência universitária, um conglomerado de edifícios brancos e azuis, autênticos caixotes cheios de janelas. Mas, na verdade, aquele corredor do 6º piso foi o sítio mais acolhedor que podíamos ter encontrado. Rapidamente, formamos a nossa pequena família: portugueses, espanhóis, franceses e uma polaca. Tornámo-nos inseparáveis. Até hoje.

 

Praga é um conto de fadas. Relembro, inúmeras vezes, aquelas ruas pequenas de edifícios restaurados, coloridos, intricados. Acordávamos sempre de manhã cedo, ainda escuro, e fazíamos 40 minutos no tram 22 até o nosso hospital. Parece que ainda sinto o frio doloroso na cara, o reclamar dos ossos e o barulho dos pés ao pisar a neve fofa acabada de cair das nuvens. Tiritávamos de forma incontrolada, apesar do gorro enfiado até ao pescoço, do casaco apertado ao máximo e das luvas nas mãos. Mas Praga nevada, em plena época de Natal, com os seus Christmas´markets ficará, para sempre, na minha memória. O cheiro do trdlo acabado de fazer, o fumegar do hot wine nas nossas mãos e um grupo animado de Erasmus a cantar múscias de Natal por baixo de um pinheiro iluminado gigante.

Fiz, em plena Europa central, dos melhores amigos que levo comigo para a vida. Foi lá que cresci, que conheci mundo! Tudo nos era possível, tínhamos a liberdade nas mãos e vontade de a experimentar ao máximo. Em poucas horas eram decididas e planeadas viagens e, dias depois, lá estávamos nós a entrar para um autocarro, de mochila às costas e aventura como destino. Outras vezes, já fartos do frio da neve, ficávamos sentados, pela noite dentro, na carpete suja do corredor, a provar as deliciosas iguarias de vários países, acompanhadas pelo habitual meio litro de Kozel ou Pilsner fresquinhas. Viajávamos, apenas, nas nossas conversas, no partilhar de histórias e de diferentes culturas. Estar em Erasmus é estar no mundo inteiro ao mesmo tempo.

 

É difícil resumir um ano como aquele, em que tanto aconteceu e em que tudo mudou. Eu mudei. Fui para lá sem conhecer ninguém. Ia habituada à rotina de Coimbra, ao vaivém das festas académicas, dos encontros na Praça da República, da família perto. E, de repente, aterrei naquela cidade estranha, rodeada por milhares de jovens estrangeiros, cada um com o seu inglês de sotaque engraçado. Saí de lá com a certeza de que sou capaz de sobreviver, que me consigo adaptar às circunstâncias. Praga abriu-me as portas do mundo e despertou-me a curiosidade e a vontade de fazer mais, conhecer mais, saber mais. Ser mais.

 

***

 

Senti uma felicidade incontrolável quando te vi chegar naquele avião. O abraço apertado que me deste, que me elevou do chão por segundos, trouxe-me o Portugal que tinha deixado para trás. Queria mostrar-te tudo, partilhar aquele meu novo país contigo, mostrar-te o meu corredor, a neve nos telhados, as casas, as caras. Tinha saudades tuas. Tive sempre saudades tuas, apesar de adormecer, todas as noites, com a tua fotografia colada na parede ao lado da cama, perto da almofada.

 

E, portanto, lá estavas tu no meio da neve, com o gorro branco que te tinha dado enfiado na cabeça e o teu casacão de quadrados. Gostava de te ver lá, com o teu sorriso familiar de dentes que não se tocam, sentado no banco da frente do tram. Fazia todo o sentido estarmos juntos e, naqueles primeiros dias, Praga foi perfeita contigo. Tinham-se passado 6 meses desde a nossa despedida. Naqueles dias, enquanto olhava para ti, tive a certeza de que nunca nos iríamos separar. Não consigo explicar como, mas essa certeza cresceu em mim, minuto após minuto, na felicidade estonteante de te ter lá e de te querer lá. Foi uma certeza que se insuflou, cresceu, ganhou altura...

 

...e depois se estatelou no chão. É engraçado como as coisas mudam em instantes. Lembro-me tão bem desse momento em que deixei pousar, descontraidamente, os meus olhos na tua conversa virtual. O coração assustou-se e o corpo gelou. Não estava a compreender. Não queria compreender.Não era possível. Não. Não podia ser. Olha para mim, não vês? Sou eu. Eu. Era suposto ficarmos juntos, não sentes? Sentes. Dás-me as mãos. Abraças-me. Explicas. Desculpa as lágrimas, mas não as consigo controlar. Tremo. Lembras-te de como fomos felizes antes? Não me perdoas nunca e eu diminuo-me no teu abraço. Culpas-me. Culpo-te. Culpo-me. Vê como Praga se tornou feia. Vê como chove e eu não me importo. Tudo é cinzento do alto de Petřin e as ruas passam rápido pela janela do tram e não as vejo. Não consigo ver nada. Sinto apenas o nó na garganta e o erro em que tornámos o futuro.

Não vás ainda, dá-me a tua mão. O futuro vem depois e estás aqui. Ainda somos os mesmos hoje. Amanhã começamos a andar em sentidos opostos. Vamos fingir que tudo está bem. Lembras-te de como ríamos juntos? A tua face esquerda, a minha preferida. O alto na tua sobrancelha por causa do piercing. Os teus ossos salientes. O tempo passou. Voltamos atrás?

 

Se não fosse Praga, talvez ainda estivéssemos juntos. Aquele ano separou-nos definitivamente. Ganhei Praga e perdi-te. Naquela manhã, acordamos e levei-te ao aeroporto. Lembro-me que fizemos aquele caminho em silêncio, olhos nos olhos, de mãos dadas nos solavancos do autocarro, com a tua mala aos nossos pés. Conhecia-te tão bem...! Os teus olhos, o teu modo de olhar, o lábio inferior mais saliente. Deste-me o último beijo antes de embarcares. O último beijo da nossa história. Não houve mais carinho entre nós. Aquele avião levou-te.

 

 

To be continued...

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